
Pesquisadores da USP, em parceria com o McLean Hospital, nos Estados Unidos, desenvolveram uma nova abordagem terapêutica voltada ao tratamento de adolescentes com transtorno de personalidade borderline associado a transtornos alimentares. A iniciativa busca preencher uma lacuna na rede pública de saúde, que atualmente oferece poucas opções de tratamento para essa combinação de condições psiquiátricas – caracterizadas por alta complexidade, sobreposição de sintomas e fatores de risco comuns. As intervenções existentes são escassas, altamente especializadas, de longa duração e pouco íveis à população. Adolescência é uma fase considerada crucial para obter melhores prognósticos, evitar a piora dos sintomas e reduzir o risco de cronificação dos transtornos.
A abordagem, intitulada Bom Manejo Psiquiátrico para Adolescentes com Transtorno de Personalidade Borderline e Transtornos Alimentares (GPM-AED, na sigla em inglês), é multidisciplinar e inclui diagnóstico precoce, acolhimento, psicoeducação, manejo de comportamentos autodestrutivos, participação ativa da família e uso de medicação, quando necessário. "A condição clínica desses pacientes é marcada por instabilidade emocional, impulsividade, relacionamentos interpessoais intensos e risco elevado de suicídio, sendo agravada por uma relação disfuncional com a comida, frequentemente usada como forma de regulação emocional”, descreve o médico psiquiatra Marcos Signoretti Croci.
O pesquisador é um dos coordenadores do Ambulatório para o Desenvolvimento dos Relacionamentos e Emoções (Adre) do Instituto de Psiquiatria (IPq) do Hospital das Clínicas (HC) da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP), onde está sendo implementada a nova proposta terapêutica.
Desde sua criação em 2017, o Adre já atendeu mais de 100 pacientes de 13 a 18 anos com desregulação emocional grave, encaminhados pelos Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), pelas Unidades Básicas de Saúde (UBS) e outros serviços internos do IPq. “O tratamento dura, em média, seis meses, e apesar de não haver cura definitiva para os transtornos, a maioria dos pacientes recebe alta após esse período, com remissão significativa dos sintomas, como uma maior regulação emocional e redução de comportamentos de risco – autolesão e ideação suicida”, relata Croci.
Como forma de divulgação das propostas do novo manejo e treinamento dos profissionais, anualmente o Adre também promove workshops voltados para médicos, psicólogos, enfermeiros e outros profissionais de saúde mental, quando são disponibilizadas inscrições gratuitas para profissionais que trabalham no CAPS.
A médica Yasmin Nascimento Ávila concluiu sua especialização em Psiquiatria no Adre, onde atuou no atendimento direto aos adolescentes. Atualmente segue como pesquisadora voluntária, mas decidiu levar a experiência – que considera de sucesso – para a sua cidade natal, em Belém, no Pará. Animada com os resultados do novo modelo de manejo clínico, ela pretende implementar em breve um centro de atendimento semelhante na região. Yasmin conta que “foi um alento perceber que é possível tratar pacientes com esses transtornos. Há um estigma em relação aos pacientes borderline. Durante a formação médica, muitas vezes perdemos a esperança de terapias eficazes para esses casos. O novo manejo baseado em evidências representa uma luz no fim do túnel”, afirma.
Sobreposições de sintomas e fatores de risco
De acordo com o médico psiquiatra, os transtornos de personalidade costumam surgir na adolescência e no início da idade adulta. Estima-se que entre 30% e 50% dos adolescentes com transtorno de personalidade borderline em tratamento ambulatorial também apresentem sintomas de transtornos alimentares, como anorexia nervosa, bulimia e compulsão alimentar — condições cujos diagnósticos podem se sobrepor ao longo do tempo.
Embora existam tratamentos eficazes para ambas as condições separadamente, como a Terapia Comportamental Dialética, a Terapia Analítica Cognitiva e as abordagens baseadas em mentalização para o transtorno— além da Terapia Cognitivo-Comportamental e intervenções familiares para os transtornos alimentares —, Croci explica que essas abordagens são altamente especializadas, de longa duração e com oferta restrita, o que as tornam pouco íveis à rede pública de atenção primária à saúde. “Somente os pacientes que não apresentam melhora com intervenções do GPM-AED [Bom Manejo Clínico para Adolescentes com Transtorno de Personalidade Borderline e Transtornos Alimentares] são encaminhadas para esses terapias, que também são indicadas para adultos que convivem com os transtornos”, diz.
Segundo Croci, a nova proposta terapêutica é focada especificamente no adolescente por compreender que ambos os distúrbios, nesta faixa etária, têm sobreposições sintomáticas porque compartilham fatores de risco e características clínicas semelhantes: histórico de trauma ou abuso na infância; apego inseguro (relações instáveis); afetividade negativa (emoções intensas e difíceis de controlar); dificuldade na regulação emocional; impulsividade; autoimagem instável e baixa autoestima; e comportamentos autodestrutivos (comportamentos autolesivos, como cortes ou vômitos autoinduzidos).
O GPM-AED foi uma adaptação do modelo General Psychiatric Management — originalmente voltado para adultos com transtorno de personalidade borderline, desenvolvido pelo psiquiatra John Gunderson, professor da Faculdade de Medicina de Harvard e pesquisador do Hospital McLean, nos Estados Unidos, instituição de referência mundial em borderline.
Aliança terapêutica
Dentre as intervenções da nova abordagem, Croci considera difícil identificar isoladamente qual seja mais importante, assim como ocorre em outros tratamentos complexos, mas ele ressalta que a formação de uma aliança terapêutica colaborativa com o paciente é fundamental para a evolução do tratamento, pois permite que ele se engaje em um aprendizado ativo e na implementação de mudanças.
Segundo o médico, para que essa aliança seja efetiva, são aplicados diversos procedimentos, como a comunicação diagnóstica — que possibilita ao clínico compreender e explicar os problemas de saúde mental ao paciente —, a psicoeducação, a validação emocional e o uso de estratégias de comprometimento. Croci também reforça a importância do envolvimento da família, considerado um componente essencial no tratamento. A participação familiar contribui para o engajamento do paciente, melhora a dinâmica relacional e fortalece o apoio ao longo da terapia.
Com informações assessoria jornal da USP